Queimada, gado e centenas de invasores. Três meses após uma grande operação do Ibama contra crimes ambientais, a Terra Indígena (TI) Trincheira Bacajá, no sudeste do Pará, voltou a sofrer com o aumento do desmatamento ilegal e com a presença em massa de não indígenas.
Na semana passada, a reportagem flagrou um grande incêndio florestal em ramal (estrada de terra) a cerca de 20 km da Vila Sudoeste, pertencente ao município de São Félix do Xingu. O fogo já havia pulado para um pasto e ameaçava o gado. No ar, dois pares de araras voavam em círculos, provavelmente tentando alcançar os ninhos cercados pelas chamas.
“Tiraram uma beira, ali. Aí, ficou um foguinho. De um foguinho, virou um fogão. Agora, queimou um monte de mango [madeira serrada] de curral de um homem ali, ficou só a cinza”, afirmou um invasor, que se identificou como Márcio. Dono dos bois, ele chegou apressado de moto com uma motosserra na garupa. “Vou tirar uns paus queimando e aparar [o fogo].”
Pasto, desmatamento, bois, curral e estrada -tudo ali é ilegal, pois está dentro da TI Trincheira Bacajá, homologada em 1996 e habitada pelo povo xikrin, falantes da língua caiapó. As invasões tiveram início em 2016, por meio de ramais ilegais usados para roubo de madeira, mas o desmatamento explodiu no ano passado, após as promessas do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de revisar demarcações de terras indígenas e de abri-las para agricultura e pecuária.
Em abril, a região foi alvo de uma grande operação do Ibama. Os fiscais destruíram parcialmente uma ponte de madeira de acesso à TI, construída junto com um aterro de cerca de 300 metros que danificou as margens do rio Negro (diferente do que corta o estado do Amazonas). Na Vila Sudoeste, o órgão ambiental desmontou duas serrarias que se abasteciam de madeira ilegal do território xikrin.
Além disso, o Ibama multou a Prefeitura de São Félix do Xingu (por permitir a via de acesso até a TI), o presidente da associação dos invasores, Arilson Brandão, e o vereador Silvio Coelho, aliado e correligionário do senador Zequinha Marinho (PSC-PA), que vem apoiando invasores de terras indígenas localizadas no Médio Xingu.
Via assessoria jurídica, a prefeita de São Félix, Minervina Barros (PSD), informou ter recorrido da multa aplicada pelo Ibama. A administração afirma que as pontes e as estradas de acesso à invasão estão entre um assentamento do Incra e uma terra indígena, ambas áreas de competência federal.
“Importante frisar que o município de São Félix do Xingu possui área de 84,2 mil km², tendo mais de 10 mil km de estradas vicinais, de modo que não pode o município já combalido arcar com custos de responsabilidade do governo federal, não tendo nem pessoal para realização dessa obra, ainda mais no estágio grave da pandemia da covid-19 no município”, diz a prefeitura.
A reportagem localizou o vereador Silvio Coelho na Vila Sudoeste, onde reside, mas ele não quis gravar entrevista. Segundo a autuação, o vereador ajudou na construção da ponte e do aterro, além de ter sido flagrado dentro da TI pelo Ibama. Brandão tampouco respondeu às solicitações enviadas via WhatsApp.
Irritado com a veiculação na TV Globo de uma reportagem sobre a operação na Tricheira Bacajá e em outras TIs vizinhas, o governo Bolsonaro exonerou, em maio, o então coordenador de operações de fiscalização do Ibama, Hugo Loss, que participou da ação, e o coordenador-geral de fiscalização, Renê Luiz de Oliveira.
Em seguida, o desmatamento voltou a crescer. Houve a perda de 32 hectares em junho, contra apenas 3 hectares em maio, segundo monitoramento via satélite Sirad X, da Rede Xingu+, articulação de indígenas e ribeirinhos da bacia do rio Xingu, com participação do ISA (Instituto Socioambiental). Além disso, foi detectado um novo ramal que trouxe invasores para cerca de 2 km da aldeia Kenkro, aumentando o risco de conflitos.
No domingo (26), a reportagem enviou email ao Ministério da Defesa questionando por que a Operação Verde Brasil 2, voltada ao combate a crimes ambientais na Amazônia, não está agindo na Trincheira Bacajá, mas não houve resposta.
Na ponte parcialmente destruída pelo Ibama, é intenso o movimento de invasores em motos, que conseguem atravessar por meio de um único tronco serrado. Um alqueire grilado ali pode custar R$ 1.500, valor bem abaixo dos R$ 30 mil por alqueire comercializados na região.
A reportagem também flagrou um caminhão sem placas e carregado de toras em estrada próxima à Trincheira Bacajá, praticamente a única área florestal dessa região de São Félix do Xingu, município que concentra o maior rebanho bovino do país.
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No ano passado, Trincheira Bacajá perdeu 3.969 hectares de floresta, a maior taxa de desmatamento desde a homologação, segundo o monitoramento Sirad X. A maior parte dessa destruição ocorreu durante o segundo semestre, no período de seca, que favorece o desmate.
Os invasores são da Vila Sudoeste, surgida dos anos 1990 a partir de um assentamento do Incra, e de pessoas de outras regiões do Pará e até do Tocantins. O estímulo vem das promessas de Bolsonaro de reduzir terras indígenas e da situação da vizinha TI Apyterewa, cuja desintrusão dos não indígenas vem sendo adiada pelo governo federal.
Em agosto do ano passado, os guerreiros xikrins tentaram expulsar os invasores por conta própria, mas eles não saíram. Em setembro, após decisão judicial que determinou a reintegração de posse, a Polícia Federal intimou os invasores a deixar a área em até sete dias, sob pena de multa diária de R$ 1 mil e retirada forçada, mas novamente sem sucesso.
Nos dias em que a reportagem esteve na região, a informação era de que o presidente da associação, Arilson Brandão, estava dentro da terra indígena, descumprindo determinação judicial. No WhatsApp, sua foto aparece com os dizeres: “Intervenção militar já com Jair Messias Bolsonaro. Nós tiamamos (sic) capitão. Terra prometida”.