Governo deixa de proteger terra com vestígios de isolados na Amazônia

As publicações chegaram a "desmentir" os altos níveis de desmatamento - Foto: Sérgio Lima/ Poder360
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O prazo para o governo federal estabelecer a proteção legal de uma terra habitada, segundo levantamentos do próprio órgão, por indígenas isolados entre Lábrea e Canutama, no Amazonas, terminou no último dia 12 de dezembro. A portaria que deveria manter a restrição de acesso à área, contudo, não foi editada nem reeditada pela Funai (Fundação Nacional do Índio), apesar de inúmeras advertências do MPF (Ministério Público Federal) e de organizações não governamentais.

Na prática, a ausência de uma Portaria de Restrição de Uso deixa a área de mais de 647 mil hectares, a Jacareúba/Katawixi, ainda mais escancarada para desmatamento e roubo de madeira, grilagem de lotes, caça clandestina e garimpo. Uma portaria desse tipo permite que a Funai controle a entrada e saída de não indígenas no território e realize ações de fiscalização e expedições com o objetivo de identificar qualquer tipo de ameaça à segurança desse grupo isolado, conhecido como Katawixi.

A proteção legal do território ocorria desde 2007, quando a Funai publicou portaria pela primeira vez para estabelecer “a restrição de ingresso, locomoção e permanência de pessoas estranhas aos quadros da Funai na área pelo prazo de três anos”. O documento foi renovado sucessivas vezes até vencer, em dezembro último.

A coluna apurou que a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF, vinculada à PGR (Procuradoria Geral da República), em Brasília, enviou nesta sexta-feira (21) um ofício ao presidente da Funai, o delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier, para novamente cobrar “informações sobre o vencimento” de quatro portarias de restrição de uso em terras de índios isolados, incluindo o caso da Jacareúba/Katawixi.

Paralelo a isso, por duas vezes a Procuradoria da República em Tefé (AM) também cobrou – em 13 de dezembro de 2021 e 12 de janeiro de 2022 – do coordenador regional da Funai em Lábrea (AM), Manoel Arnóbio Teixeira Alves. explicações sobre “a situação em geral dos indígenas isolados da Jacareúba/Katawixi”.

O MPF anexou uma manifestação feita na Ouvidoria do MP estadual por um cidadão que, baseado na campanha “Isolados ou Dizimados”, lançada em agosto passado por organizações não governamentais, afirmou que quatro terras indígenas com grupos isolados, incluindo a Jacareúba, estariam desprotegidas até janeiro pois “os dispositivos que garantem sua sobrevivência, as Portarias de Restrição de Uso, vão vencer”.

Procurada pela coluna, a Procuradoria no Amazonas informou que “ainda não houve resposta da Funai” sobre os questionamentos do MPF.

Funai informou ao MPF que “não localizou” portaria
No ofício desta sexta-feira à Funai, a procuradora da República e coordenadora da 6ª Câmara, Eliana Peres Torelly de Carvalho, citou uma nota técnica anterior do MPF, de setembro de 2021, que também já falava sobre a necessidade de renovar as quatro portarias cujo vencimento do prazo era iminente (além da Jacareúba, são os casos das terras Piripkura, Ituna-Itatá e Pirititi).

Segundo o ofício, a Funai respondeu na ocasião que a portaria relativa a Jacareúba/Katawixi “não foi localizada”. As portarias referentes a Piripkura e Pirititi foram renovadas, porém por apenas seis meses, e já devem vencer em março e maio, respectivamente.

Procurada pela coluna na noite de quinta-feira (20), a Funai não havia se manifestado até o fechamento deste texto. Caso o órgão se manifeste, o texto será atualizado.

A última portaria que restringiu o acesso à Jacareúba é a de número 1234/PRES, de 1 de dezembro de 2017. Ela foi assinada eletronicamente em 12 de dezembro pelo então presidente da Funai, o general reformado de Exército Franklimberg Ribeiro de Freitas, com um prazo de quatro anos de validade. Na justificativa da portaria, o presidente do órgão citou “o reconhecimento dos direitos originários dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, nos termos da Constituição, e “as diretrizes internacionais das Nações Unidas e da Organização dos Estados Americanos para a proteção de povos isolados”.

No perímetro interditado, disse o general, um levantamento da Funai apontou “indícios da presença de grupos indígenas isolados”.

Observatório diz que ausência de portaria é “extremamente preocupante”
O Opi (Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato), organização não governamental formada por indígenas e indigenistas, considerou “extremamente preocupante” a ausência da portaria de restrição de uso em Jacareúba/Katawixi e que ela demonstra novamente “o desleixo do governo Bolsonaro com os territórios indígenas”.

“É a portaria que dá a ferramenta administrativa e jurídica à Funai e ao Estado de, por exemplo, paralisar as atividades econômicas na região que possam ameaçar os indígenas e de se manifestar em processos de licenciamento de obras. A inexistência da portaria também impede que a Funai realize suas expedições e ações de fiscalização na área”, disse o assessor indigenista do OPI, Leonardo Lenin Santos.

Santos lembrou que já houve diversos registros da presença de índios isolados na região desde a década de 80 e que a restrição foi adotada para protegê-los dos impactos da construção das usinas hidrelétricas Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, em Rondônia, a partir de 2007. “Agora temos mais um momento de pressão na região, que é o planejamento de retomada de ações referentes à pavimentação da rodovia BR-319.” Os limites da terra indígena estão a apenas 15 km da rodovia.

O assessor indigenista do OPI ressaltou ainda que a publicação da portaria deveria ser apenas a primeira de outras medidas da Funai, como a formação de equipes para expedições na área a fim de “qualificar a presença dos isolados” e fazer ações de proteção territorial “não só restritas à Funai, mas estendida a outros órgãos de fiscalização, como Ibama e Polícia Federal”.

Isolados chegaram a cercar equipe da Funai em 2011, diz relatório
Uma das principais informações sobre a presença dos isolados na região é o relatório produzido em 2011 por uma equipe da Funai como resultado de uma expedição realizada em Jacareúba/Katawixi de 15 a 27 de setembro daquele ano. A Frente de Proteção Etnoambiental do Madeira desencadeou a investigação de campo depois que indígenas apurinãs e trabalhadores de uma empresa chamada Asserplan relataram “possíveis vestígios de índios isolados”.

Um dos integrantes da expedição foi o servidor Geovânio Oitaia Pantoja Katukina, que vem a ser hoje o coordenador de Políticas de Proteção e Localização de Índios Isolados da Funai, o mesmo setor de onde devem sair as avaliações técnicas e pedidos para edição das portarias de restrição de uso.

Em 2011, os servidores da Funai primeiro constataram na região indicada “pegadas de criança”, uma queimada de cerca de 2 km e cascas cortadas “para retirada de sorva [uma árvore]”. “Tudo indica que a retirada da sorva é para confecção de flechas e arcos e outros utensílios”, cita o relatório.

Ao percorrer 15 km na mata, os servidores da Funai encontraram “vestígios de índios isolados em todo trajeto percorrido; vestígios recentes como quebradas, tapagem, pegadas novas”. “Pernoitamos no estirão, […] onde foram vistas as pegadas de adulto e de criança, indígenas isolados”, diz o documento.

“Durante a noite, ouvimos ao redor do acampamento muitos barulhos de pisadas e imitações de diversos animais como várias espécies de inambu assoviando ao mesmo tempo, assovios e grunhidos de macaco e vozes de pessoas, causando apreensão em toda equipe.”

No dia seguinte, a expedição voltou a encontrar diversos vestígios. Por volta das 10 horas, diz o relatório, no ponto culminante da expedição, “nos deparamos com sinais claros da presença dos índios isolados ao nosso redor, parecendo que eles iriam nos atacar”.

“Fizeram tapagens na trilha da equipe, que se agachou apreensiva e em seguida começamos a ouvir várias imitações de animais como macacos, inambu e batida em árvores, usando como forma de sinais. A cada batida na árvore, os índios isolados, ao nosso redor, começavam a se movimentar e a imitar animais. Tudo leva a acreditar que havíamos montado nosso acampamento bem próximo do ponto de caça e pesca dos indígenas.”

Ao final do relatório, os servidores da Funai escreveram: “Conclui-se pela confirmação de um povo indígena isolado, referência número 12, na Terra Indígena Katwixi/Jacareúba” e entorno. Sugeriram como continuidade dos trabalhos a “localização de ocupação territorial de índios isolados; monitoramento dos referidos índios; vigilância e proteção territorial”.

Isolados correm risco de “genocídio”, alerta relatório do ISA
A situação dos isolados na Terra Indígena Jacareúba/Katawixi é ainda mais preocupante porque o território sofre atualmente “uma escalada de invasões, desmatamento e degradação florestal”, de acordo com relatório técnico produzido no ano passado pelo ISA (Instituto Socioambiental). Segundo o documento, a degradação ambiental e a violação de direitos dos indígenas “oferecem risco à segurança física e alimentar desses grupos” que vivem em isolamento voluntário.

O estudo explica que a terra indígena tem uma sobreposição quase integral (96% do território) com o Parque Nacional Mapinguari, criado em 2008, outra unidade de conservação. Isso também não tem garantido a segurança do território. De acordo com o levantamento, que cita dados de satélite do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), “até julho de 2020 já foram desmatados 5,8 mil hectares no interior da TI [terra indígena], o que corresponde a 3,3 milhões de árvores derrubadas”.

O levantamento destaca “como os períodos que antecedem o término de vigência/renovação das Portarias de Restrição de Uso apresentam registros de desmatamento, fruto da ausência de operações de fiscalização, bem como da expectativa e especulação dos invasores sobre a não renovação das Portarias”.

De acordo com o estudo, que cita os levantamentos de campo da Funai, o grupo isolado ocupa uma área formada por florestas e castanhais que cobrem cerca de 20% da área. Partes da TI estão sendo exploradas “por fazendeiros, que derrubam a floresta para conversão de pastagens”.

A Jacareúba/Katawixi “está sob pressão com a finalidade de apropriação fundiária irregular” e também “sofre a pressão de processos minerários cadastrados na Agência Nacional de Mineração”. Além disso, a área deverá ser impactada pela pavimentação da rodovia BR-319.

“Diante do quadro fático delineado, a medida necessária para salvaguardar as vidas dos povos indígenas isolados é a intervenção urgente. Para isso permanecem indispensáveis medidas emergenciais para evitar a entrada de invasores nas TIs Jacareúba-Katawixi e Pirititi [em Roraima], que podem provocar o genocídio dos indígenas isolados”, alerta o documento, subscrito pelo engenheiro agrônomo Antonio Oviedo, pelo cientista social Tiago Moreira dos Santos e pela advogada Juliana de Paula Batista, todos do ISA.

 

 

Fonte: Uol/ Rubens Valente

 

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