BRASÍLIA – O estudo que compõe o licenciamento ambiental da linha de transmissão Manaus (AM) a Boa Vista (RR), material realizado para analisar o impacto da obra na área indígena, é incipiente, repleto de falhas e não tem nenhuma condição de ser aprovado. Em resumo, é essa a conclusão de um parecer técnico da Fundação Nacional do Índio (Funai), que analisou o plano básico ambiental (PBA) indígena apresentado pela concessionária Transnorte Energia (TNE), dona do projeto de transmissão.
Por meio da Lei de Acesso à Informação, o Estado teve acesso à íntegra do parecer técnico da Funai. A peça não tem caráter conclusivo, uma vez que o estudo do componente indígena ainda terá de ser submetido às 56 aldeias da terra indígena Waimiri Atroari, em Roraima, para só então retornar à Funai e, finalmente, ter um posicionamento definitivo sobre o assunto. A posição do parecer, no entanto, é enfática ao demonstrar dezenas de problemas no estudo.
“A Funai tem claro que o projeto como apresentado não é exequível, devendo ser reestruturado conforme orientações já expostas, com os devidos reordenamento, reformulação e adequação dos programas”, concluem os técnicos que avaliaram o material entregue pela Transnorte. O parecer informa que, dos 23 programas de compensação e redução de impactos propostos no “Plano Básico Ambiental Componente Indígena”, quatro foram considerados inaptos para apresentação ao povos indígenas. Os demais 21 precisam de ajustes e têm falhas na elaboração, ou seja, nenhuma proposta foi considerada efetivamente pronta.
A construção da linha é prioridade na agenda do presidente Jair Bolsonaro. O Ministério de Minas e Energia já tinha prometido que a licença de instalação da obra sairia até julho, com ou sem o aval da Funai, o que não ocorreu. Leiloada em setembro de 2011, a rede Manaus-Boa Vista tinha prazo de três anos para ficar pronta, com entrada em operação prevista para janeiro de 2015.
O impasse sobre a questão indígena, no entanto, paralisou o empreendimento. Do total de 721 km do traçado previsto para ser erguido em área próxima da BR-174 que liga as duas capitais, 125 km passam pela terra
indígena, onde vivem 2,1 mil índios em 56 aldeias.
O órgão responsável pelo licenciamento ambiental é o Ibama, que pode até aprovar a licença da obra, independentemente do que a Funai concluir. Na prática, porém, o Ibama sempre aguarda a posição da Funai e segue as suas definições, para evitar conflitos entre os órgãos ou mesmo ser responsabilizado depois por ter autorizado algo que outra instituição havia rejeitado.
Em julho, reportagem do Estado revelou que a Transnorte apresentou um pacote dei ndenizações ao povo kinja, como são conhecidos os indígenas da terra indígena Waimiri Atroari, no valor total de R$ 49,635 milhões. No estudo, a empresa afirma que identificou 37 impactos da obra nas terras indígenas. Outros 27 foram considerados irreversíveis, com reflexo constante para a população indígena.
A proposta, avaliam os técnicos da Funai, minimiza os impactos ao oferecer uma resposta financeira ao assunto. “Tal fato evidencia que o empreendedor, ao invés de partir de parâmetros indigenistas e de discussões sobre uso e valoração dos recursos naturais e do território pelos Kinja (o que não foi feito nas oficinas), aparentemente determinou uma faixa de valor para compensação e aplicou uma ‘metodologia’ que resolvesse a questão”, declara.
A linha Manaus-Boa Vista é o maior empreendimento com previsão de instalação dentro de terras indígenas dos últimos 20 anos. O Ibama, como autoridade licenciadora, considerou o empreendimento viável com o traçado no interior da terra indígena, apesar de a Funai já ter apontado a inviabilidade do componente indígena. “Essa decisão gerou mais insegurança entre os Kinja, uma vez que o processo de consulta sobre o estudo não havia sido finalizado”, declara a Funai em seu parecer.
Hoje, a expectativa do governo é que a Funai encaminhe ao Ibama uma posição final sobre o assunto
até 14 de outubro.
Roraima é o único Estado do Brasil que não está conectado no Sistema Interligado Nacional, rede de transmissão que corta todos os demais Estados do País. Por causa desse isolamento, Boa Vista e região dependem da importação de energia da Venezuela ou da geração de usinas térmicas brasileiras alimentadas por óleo diesel, fonte mais cara e poluente.
Para a Transnorte Energia, formada pela estatal Eletronorte e a empresa Alupar, a questão indígena não é o único assunto a resolver. A concessionária cobra uma taxa extra de R$ 966 milhões do governo, sob alegação de que foi prejudicada pelo atraso nas obras e que não teve culpa de nada.
A concessionária quer receber uma fatura anual de R$ 395,7 milhões pelos próximos 27 anos, para operar a linha que vai construir. A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) rejeitou a proposta, derrubou boa parte das justificativas da concessionária e fez uma contraoferta: pagamento anual de R$ 256,9 milhões, pelo prazo de 19 anos e meio. O caso segue em negociação.
Procurada, a Transnorte não comentou o assunto. Em nota, a Funai reiterou, nesta terça-feira, que o parecer não é conclusivo e que os programas precisam ser aprovados pelo povo indígena Waimiri Atroari. “O processo de licenciamento ambiental/do Linhão Manaus-Boa Vista está em curso e transcorre normalmente, sendo que, recentemente, a empresa Transnorte Energia (TNE), responsável técnica pela execução da obra, apresentou documento obrigatório dentro do processo de licenciamento, correspondente ao Componente Indígena do Projeto
Básico Ambiental (PBA-CI)”, diz a nota.
A Funai reconheceu que pediu “ajustes pontuais” nos programas antes da apresentação aos indígenas. O órgão ainda reforçou que o parecer definitivo do presidente da Funai ao Ibama só ocorrerá depois da consulta às comunidades indígenas.A Funai também afirmou que a reportagem se baseou em parecer antigo, mas não houve nenhuma alteração no conteúdo do parecer obtido via LAI, que seguiu para análise dos povos indígenas.
Fonte: Conteúdo Estadão
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